
(Foto: Thiago Gomes/Agência Brasil)
Coordenadora de comunicação da Comissão Episcopal para a Amazônia e também da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) conta como a Igreja tem ajudado a população indígena a defender as florestas
Um olhar diferente
A convocação para o Sínodo Pan-Amazônico lança novamente um olhar – que já vem sendo insistido pelo pontífice desde a sua Carta Encíclica Laudato Sì (LS) – sobre a realidade deste nosso chão tão importante para o mundo, a Pan-Amazônia. São tantas riquezas e tantos povos, mas violados, explorados e degradados.
“Como nunca na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (…). Que o nosso seja um tempo que recorde o despertar de uma nova reverência perante a vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela jubilosa celebração da vida”, informa a Carta da Terra, assinada em Haia em junho de 2000.
Povos da floresta

(Foto: Thiago Gomes/Agência Brasil)
Pensar num Sínodo para a Pan-Amazônia é pensar nos povos e nações que vivem nos nove países que têm em seu território a floresta Amazônica, sendo no Brasil: 67%, Peru: 13%, Bolívia: 11%, Colômbia: 6%, Equador: 2%, Venezuela: 1%. Suriname, Guiana e Guiana Francesa somam 0,15% do bioma amazônico. Pensar num Sínodo Pan-Amazônico é olhar para a América do Sul, onde habitam aproximadamente 2,8 milhões de indígenas, pertencentes a 390 povos originários, e cerca de 137 povos “isolados” (não contatados). São pessoas que falam 240 línguas diferentes, de 49 ramos linguísticos, consideradas as mais relevantes do ponto de vista histórico e cultural. Contudo, não podemos esquecer as comunidades ribeirinhas e os territórios remanescentes de comunidades quilombolas. E nos lembrar também das populações urbanas, pois aproximadamente 79% delas vivem em centros urbanos na Amazônia brasileira.
Evangelização intercultural
O Sínodo terá presente a evangelização na Pan-Amazônia e é preciso, mais do que nunca, pensar a evangelização a partir da cultura desses povos, que têm um modo particular de relacionar-se com o Sagrado, têm sua espiritualidade, vivem uma fé concreta, relacionam-se com o “Deus Onipotente, presente em todo o universo e na mais pequenina das criaturas, e que envolve com ternura tudo o que existe”, conforme escreveu o papa Francisco em Laudato Sì (nº 246). Esses povos vivem uma forte espiritualidade e educação ecológica, preservam uma aliança entre eles e o ambiente. É preciso falar de interculturalidade.
Isso faz-me lembrar do encontro promovido pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) em outubro de 2017 em Itaituba, no Pará, onde estiveram, pela primeira vez reunidos, os povos da Bacia do Rio Tapajós e a Igreja católica para, juntos, definirem uma agenda comum em defesa dos povos, dos rios, da floresta e de seus territórios.
A grande família
Naquele encontro, o ser humano e a natureza formavam uma unidade. Era só contemplar o lugar da reunião: debaixo de um santuário natural, dezenas de mangueiras formavam, com seus troncos, as pilastras, e suas folhas amenizavam os raios do sol. Nesse aconchego, uma pequena garota munduruku dormia um sono profundo, no chão, em cima de uma toalha aos pés da mãe, atenta a cada palavra que a assembleia falava. As demais crianças brincantes corriam alvoroçadas. A juventude guerreira, sempre a postos, com frequência preparava o xibé, uma mistura de farinha de mandioca com água, para servir ao grupo: mais de 200 pessoas. “Assim não dá fome nem sede”, dizia a jovem munduruku Marineide, que servia o xibé aprontado pelo jovem guerreiro Eldo Manhuary. Os caciques e demais lideranças pediam a palavra para expressar suas preocupações frente aos grandes projetos que chegam com força destruidora em toda a Pan-Amazônia.

(Foto: Paulo Maia/Repam-Brasil)
No rio, a vida
Foram vários momentos celebrativos, como a confraternização ao redor do fogo, liderada pelo cacique Juarez Munduruku, em que os representantes dos grupos trouxeram à memória seus antepassados e a cultura que deles receberam e a história dos povos ali presentes. Também celebraram o Rio Tapajós. Na ocasião, assumiram o compromisso de protegê-lo. “O rio é a nossa despensa. Aqui buscamos nosso alimento diário e fresco. Não podemos deixar que as mineradoras e as hidrelétricas destruam e contaminem nossas águas. Não queremos barragens, pois elas servirão a poucos”, disse a jovem liderança do povo Manoki, Tipuici Manoki, que pediu para que lembrassem o nome das lideranças, pais, mães, jovens e crianças assassinadas por conta da luta dos povos pela defesa da terra, dos rios, da floresta, da vida humana. Em seguida, às margens do Tapajós, fizeram a dança circular, o toré, de braços entrelaçados e unidos em aliança, no compromisso de defenderem a Bacia do Tapajós.
O papel das Igrejas
Os povos do Tapajós pediram à Igreja católica “missionários comprometidos para ajudar na formação de novas lideranças indígenas e comunidades tradicionais, e não apenas priorizar a sua ‘catequização’”. Convidaram a Igreja a “uma presença diferenciada, de acordo com cada realidade, que possa orientar os caciques e demais líderes locais a prepararem a juventude para lutar e defender os seus povos futuramente, para não serem enganados pelos governantes ou cooptados pelos grandes empreendimentos”. Na parceria com a Igreja católica, sugeriram um diálogo com as Igrejas evangélicas para que, realmente unidas, possam defender a floresta e os povos ameaçados.

(Foto: Paulo Maia/Repam-Brasil)
Repam em ação
Desde sua fundação, em setembro de 2014, a Repam busca fortalecer a ação da Igreja junto aos povos que vivem na Pan-Amazônia. No Brasil, no decorrer de 2016 e 2017, a Rede realizou 16 seminários em diversos locais da Amazônia Legal com o intuito de colocar em diálogo a vida do povo amazônico à luz da Laudato Sì do papa. Com isso, estabeleceu-se um diálogo entre os mais diversos povos que vivem na Amazônia, em defesa desse bioma tão caro para a humanidade, e que vem sendo aniquilado pelos projetos de destruição, infligidos pela lógica do capital desenfreado, que, por sua vez, provoca um verdadeiro etnocídio, em troca da exploração a qualquer preço. E nisso o papa Francisco exorta a um posicionamento claro da Igreja na Amazônia, para que não seja como aqueles que estão sempre de malas prontas para partir, depois de tê-la explorado completamente.
O ofegante pulmão do planeta
A exploração na região provoca riscos ambientais e sociais incalculáveis e ameaça o “pulmão do Planeta, repleto de biodiversidade”. Novamente nos lembra o papa Francisco e nos alerta que “há propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais” (LS 38). Com isso, a Igreja, por meio da Repam, se coloca num posicionamento incisivo, pois a política não deve submeter-se à economia e aos ditames do paradigma eficientista da tecnocracia. A prioridade deverá ser sempre a vida, a dignidade da pessoa e o cuidado com a Mãe Terra e tudo o que nela habita.

(Foto: Thiago Gomes/Agência Brasil)
Em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em 9 de julho de 2015, o papa não titubeou em proclamar: “digamos ‘Não!’ a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a mãe terra”.
Os legítimos guardiões da Amazônia
Na Laudato Sì encontramos o alerta: “O drama de uma política focalizada nos resultados imediatos (…) torna necessário produzir crescimento em curto prazo” (LS 178). Para o papa, “no debate, devem ter lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem levar em consideração as finalidades que transcendem o interesse econômico imediato” (LS 183).
E isso é uma verdade, pois é só perguntar a um indígena, a um ribeirinho, a um quilombola, a uma quebradeira de coco ou a um extrativista, o que é melhor para eles. Eles entendem. Eles sabem o tipo de desenvolvimento que é melhor para manter o bioma intacto. É pena que nenhum governo queira escutar as propostas dos povos que são os verdadeiros guardiões da Amazônia.